Trabalhadores #2

11.12.25
"Eu sou a Odete Maria Martins França, tenho 54 anos e tenho três filhos. Vivo em São Pedro da Cova e trabalho como Guia Turística, em Vila Nova de Gaia, desde fevereiro de 2024. Tenho tido um percurso profissional muito atribulado. Para falar sobre isso tenho de falar sobre a minha família. O meu pai tinha uma oficina de ourives, começou a trabalhar aos nove anos e era cravador. Eu nasci no meio do cheiro a lacre da ourivesaria e acabei a trabalhar com o meu pai, apesar de ter tentado sempre seguir outros caminhos. Fazíamos peças em ouro, na altura era em ouro, e vendíamos às ourivesarias. 
Depois decidi seguir outro rumo e abri um Franchise da marca de roupa Tintoretto, em Gondomar. Estávamos num Centro Comercial e a certa altura as lojas começaram todas a fechar, isto no início dos anos dois mil, e demos por nós a ser a única loja num corredor quase sem luz. Então, além de todo o investimento inicial, decidimos investir noutra loja virada para a rua, mas mesmo assim não conseguimos salvar o negócio, o que foi catastrófico, para mim e para a minha sócia. Não sei o que foi, talvez a conjuntura, como se viu depois pela crise financeira que levou à Troika, mas foi terrível, lembro-me de vários suicídios, inclusive um amigo nosso da área da ourivesaria. 
Nessa altura eu descobri que estava grávida, porque comecei a perder sangue e soube que tinha sofrido um aborto, mas que tinha outro bebé que estava bem. Eram gémeos, portanto. Quando a minha filha Carolina nasceu eu já tinha fechado a loja e fui trabalhar para uma Farmácia, duas semanas depois de ela nascer. Trabalhei lá durante cinco anos. Estava sobretudo no backoffice, mas também atendia ao balcão, sempre com supervisão, claro. Agora já não seria possível, mas na altura era. Depois voltei para a oficina, porque o meu pai estava sozinho. Ele chegou a ter mais de dez funcionários e já tinha a fundição, mas o negócio foi decaindo. Estivemos os dois sozinhos de 2016, o ano em que me separei, até ao ano do Covid. Lembro-me perfeitamente do dia em que tudo fechou, porque foi o dia em que recebi em casa a carta de aprovação da marca que eu decidi criar para vender as minhas joias, a Ama Yello
Sempre me pareceu que este negócio de família não tinha muito por onde prosperar. Eu lembro-me que o ouro era taxado a 36 por cento de IVA, por exemplo, havia sempre inspeções quando tínhamos de fazer entregas e as condições de pagamento eram uma coisa surreal. Havia clientes que só pagavam as encomendas no ano seguinte. Não há nenhuma empresa que consiga sobreviver assim. O declínio da ourivesaria era muito óbvio. Na altura do Covid eu estava a trabalhar no El Corte Inglés e conciliava esse emprego com a ourivesaria, mas tornou-se evidente que aquilo tinha de acabar. Era um barco a afundar. 
Entretanto, fiquei desempregada e tive de arranjar outro emprego. Lembrei-me da experiência que tive numas férias quando tinha 18 anos e decidi mandar o meu currículo para trabalhar numa cave. A minha intenção era trabalhar em part-time, mas não era possível, por isso aqui estou. Eu vivi em França dos cinco aos 13 anos, fiz lá os primeiros anos de escola, daí dominar o francês, o que me permitiu ficar com este emprego. Não ficamos mais tempo em França, porque a minha mãe queria regressar para Portugal, tinha medo que nós, eu e a minha irmã, depois de crescermos em França quiséssemos ficar lá. O meu pai foi para França trabalhar como ourives cravador e para grandes casas, ele era mesmo muito requisitado. Para vir para Portugal recusou uma proposta da Cartier. Às vezes penso se o meu pai tivesse ficado a trabalhar na Cartier…meu Deus! 
O meu salário, cerca de mil euros líquidos, é para pagar o crédito ao banco dos investimentos que fiz – durante muito tempo não conseguia falar sobre isto, eu podia ter feito como muitas pessoas fazem, declarar insolvência e não pagar nada do que devia, mas não seria o correto. Nós, eu e a minha sócia, quisemos cumprir com toda a gente, pagar tudo o que devíamos e espatifámo-nos, completamente. Não sei como sobrevivemos àquilo, tanto financeira, como emocionalmente. 
Agora, gostava de voltar a investir na minha marca de joias, porque preciso muito de criar. Não sei ainda como fazer isso, tenho de falar com uma contabilista para saber que tipo de licenças preciso, porque isto na ourivesaria é tudo muito complicado. Eu trabalho essencialmente com prata, mas também posso fazer peças de ouro por encomenda. Há uns tempos pediram-me para fazer uma aliança de casamento a partir de uns anéis da avó que estavam todos amassados, por exemplo. 
Já houve alturas em que não votei, mas desta última vez sim, e da anterior também, porque depois não posso reclamar, ou opinar, uma vez que não participei. Eu fiquei muito preocupada e chocada quando apareceu o Chega, mas agora compreendo que era necessário. Tínhamos os dois principais partidos a governar sempre da mesma forma e eu acho que os portugueses estavam a ver muita coisa a correr mal e, no fundo, esse partido veio mexer com os outros, obrigá-los a repensar e a fazer diferente. Se calhar, muitas vezes, aquilo que rejeitamos é aquilo que precisamos. 
Se tivesse de dar um conselho a alguém diria para não se preocuparem tanto. Um problema que agora parece enorme, daqui a umas semanas, ou meses já não tem tanta importância. Não temos de estar sempre bem, é, aliás, nas fases menos boas que podemos crescer, evoluir enquanto seres humanos."

Carrinho de mão

28.11.25
Eu sou do tempo dos babybloggers, daquele tempo em que íamos para a internet dizer o que nos passava pela cabeça sem medo de julgamentos, vá, sem demasiado medo. Agora, de há uns anos para cá, é impossível fazer isso. Não sei exactamente porquê, mas sei que é assim. Às vezes tento justificar esta falta de vontade de vir desabafar, como noutros tempos, com a sabedoria da maturidade, sim porque uma pessoa aprende a estar calada e repara que só lhe traz vantagens, mas não é isso (até porque se eu fosse assim tão madura não tinha saído do substack num momento de raiva por não encontrar os rascunhos). É outra coisa, é termos percebido que para estar aqui a falar da nossa vida temos de, além de ter uma vida digna desse nome, saber como embrulhá-la de acordo com os gostos actuais. Ninguém quer acordar as bestas adormecidas que de repente têm muitos comentários para fazer. E não há sítios seguros nas redes apesar de muitos de nós quererem acreditar nisso (lá tive de voltar a inscrever-me), eu sempre acreditei, porque achava que era preciso levar-me demasiado a sério para temer o que quer que fosse e nunca me dei essa importância. Mas já não acredito. Talvez porque o mundo deixou de me parecer um sítio seguro. Bom, sempre houve sítios mais seguros do que outros em várias partes do mundo e na parte que me tocava eu sentia-me segura. Agora, nem tanto. 
Quando me lembrava dos sonhos que tinha a dormir, podia tentar adivinhar o que me preocupava, actualmente faço-o nas longas insónias onde todo o tipo de monstros me ensombram. Esta noite, por exemplo, eram almas penadas, doenças em forma de pessoas, braços inumanos a levarem-me os filhos, gente a chorar de dor. 
Queria voltar a sentir-me leve, sem dores nos ombros e nos joelhos, sem este peso que carrego mas nem me lembro quando foi a última vez que me senti assim. Houve sempre qualquer coisa a pesar. Há sempre, mas também há carrinhos de mão para transportar os pesos. É só arranjar um a bom preço.

Terra Nova

15.11.25
Ando há muito tempo, ia dizer anos, mas tenho evitado, apesar de ser difícil, olhar para o tempo de uma forma linear, portanto, o que quero dizer é: tenho andado a pensar em assinar a versão digital do Público, o que acabou finalmente por acontecer por causa de uma reportagem que junta dois temas aparentemente improváveis: Os territórios ocupados por Israel e vinho. 
Assim que comecei a ler, percebi que tinha de continuar até ao fim e não me pareceu bem pedir mais uma vez a uma das minhas amigas para me enviar o artigo. Depois de pagar os 30€ pela assinatura semestral (que equivale a 1 kg de carne, um pacote de cereais, uma lata das grandes de grão-de-bico, dois abacates e duas garrafas de vinho¹, no supermercado; ou um polvo e uma embalagem de rolos de cozinha), fui à procura de alguma referência sobre quem tinha ''encomendado'' aquela reportagem e confirmei que foi apoiada pela fundação Investigative Journalism for Europe (IJ4EU). E além de ler sobre o que já sabíamos - Israel conquistou os montes Golã à Síria, em 1967, durante a Guerra de Seis Dias, expulsando cerca de 95% da população síria, fiquei a saber que a Adega dos Montes Golã (Golan Heights Winery) é um dos maiores exportadores israelitas de vinho e que na última década as exportações de vinho israelita duplicaram, atingindo os 57 milhões de euros anualmente. 
A reportagem, além de dar conta da estratégia de Israel para aumentar o seu território ocupando outros países e livrando-se das populações como lhe aprouver, foca-se no facto de Israel estar a produzir vinho num território ocupado e anexado ilegalmente. E apesar de esta anexação nunca ter sido reconhecida pela União Europeia e pelas Nações Unidas, os vinhos dos Golã são vendidos como ''produtos de Israel''. É como diz o académico que fez um estudo da indústria vinícola naquela região: “A Adega dos Montes Golã ajudou a criar uma nova imagem da região – não como um território ocupado, um lugar de guerras e de sangue, mas como o lugar onde se produz vinho, onde se cria a ‘Europa em Israel’.”²
Escusado será dizer que o maior comprador destes vinhos é os EUA (72%) e, na Europa, a França (9%). 
Obviamente quis saber quais são os vinhos ''israelitas'' produzidos neste território e ia-me caindo tudo quando me deparei com um vinho que se chama Terra Nova. Não consegui saber muitas coisas a não ser que se trata de uma adega fundada em 2006 por três sócios de uma cooperativa de Kanaf e que produz 15 mil garrafas por ano, mas fiquei com a pulga atrás da orelha. 
Outra coisa que não tem nada a ver com esta reportagem, mas que me deixou tão estupefacta como o vinho israelita dos Golã, foi deparar-me com esta notícia (tentei associar o link do Haaretz, mas não foi possível, o título é qualquer coisa como "Agora é a altura certa para visitar os montes Golã [só tem de ignorar os bombardeamentos do Hezbollah])". Na verdade não deveria ter ficado tão espantada quanto isso, tendo em conta a impressão que os grupos de turistas israelitas deixam por onde passam (perguntem a quem trabalha em turismo).

¹ Uma garrafa da Adega Cooperativa de Silgueiros e outra da Symington

² Partindo do princípio que alguém tinha uma  imagem, seja ela qual for, daquela região

Trabalhadores #1

11.11.25
"Eu chamo-me Nazaré Maria Lopes Macedo, tenho 64 anos e sou empregada de limpeza. Ganho o salário mínimo e trabalho oito horas por dia. Comecei a trabalhar já nem sei bem com que idade, não foi assim muito nova, já tinha vinte e tal anos. Eu estava a estudar. O meu pai era funcionário público e a minha mãe estava em casa. Somos três irmãos. Já trabalhei como assistente médica numa clínica que havia em Santa Catarina e adorava. Estou nas limpezas há uns 15 anos. Nunca casei. 
Sempre vivi no Porto, agora estou a viver provisoriamente num quarto, porque tive de sair do apartamento onde vivia. É o costume, é aquilo que se sabe, as casas são para os turistas. Continuo à procura de uma casa, porque a esperança é a última a morrer. 
Eu voto em todas as eleições, porque acredito que as coisas podem mudar e aquilo que eu mais gostava de ver era habitações para as pessoas deixarem de viver na rua. É uma vergonha para o nosso país ver tanta gente a dormir na rua, nunca se viu tanta gente como agora. Tiram-se as pessoas das casas para dar lugar aos que vêm de fora. As casas precisam de obras, sim senhora, mas não tem jeito nenhum as pessoas serem postas na rua. Não é justo. 
Aquilo que eu gostava de dizer aos jovens é que tenham juízo e levem o futuro para a frente."

Querido Blogger

29.10.25
Fui escrever para outro sítio na expectativa de encontrar uma aplicação mais fácil de usar, já que aqui mudaram as coisas, algumas coisas pelo menos, e não me parece que mudaram para melhor, mas pode ser de mim. Acontece que não escrevi mais, como pensei que faria e não gostei muito de me ver ali, no susbstack, porque parece que estou numa daquelas salas com múltiplas reflexões em espelhos, com várias pessoas reflectidas neles. Aqui, sou só eu a olhar para mim num daqueles espelhos para onde posso entrar. Não sei, identifico-me mais contigo, mas talvez não tenha dedicado tempo suficiente ao que me parece ser uma espécie de linkdin de artistas. 
Eu gosto de acompanhar as tendências e arriscar mudanças, mas não há mal nenhum em ficar onde nos sentimos mais confortáveis, pois não? Por isso, aqui me tens. 
No outro dia, trouxe da biblioteca uns livro de Camilo Castelo Branco, um com as memórias do cárcere e outro com as cartas dispersas, e fiquei com a sensação de estar perante um grande escritor demasiado enredado nos seus dramas pessoais, que são os mesmos que ele projecta nas suas histórias. Quer dizer, é até ridículo eu estar com estas considerações quando conheço tão pouco da obra cameliana, mas é este o pão nosso de cada dia, toda a gente a opinar sobre tudo como se fosse especialista em vários assuntos. Isto para dizer que se o Camilo regressasse do mundo dos mortos¹ ele escreveria num blogue e não no substack. Acho eu. Na verdade, decidi (re)ler Camilo, porque precisava de saber mais sobre a sua passagem pela Póvoa de Varzim, depois de ver uma exposição que lhe é dedicada no Museu Municipal. Precisar é capaz de ser uma hipérbole, uma vez que não sei quando vou dar utilidade a estas recolhas de informação, mas se sinto que tenho de fazer uma coisa faço. Outra coisa que sinto que preciso de fazer é definir a classe trabalhadora. Quem são os trabalhadores que Raquel Varela quer, e bem, defender? Somos todos os que trabalham por conta de outrém? São os que estão no fim da cadeia? O operariado? Eu realmente gostava de ver estas pessoas revoltarem-se, mas a grande maioria está demasiado cansada, desinformada e amargurada para isso. Pode até acontecer de se revoltarem (quem me dera poder assistir a isso), mas não será pelas causas mais nobres. Nunca é. Só nas histórias que contamos. 

¹ O que não é uma coisa que Camilo desconsiderasse, como se pode ler no prefácio da 5.ª edição do Amor de Perdição, em 1879: ''Se, por virtude da metempsicose, eu reaparecer na sociedade do século XXI, talvez me regozije de ver outra vez as lágrimas em moda nos braços da retórica, e esta 5.ª edição do Amor de perdição quasi esgotada.''

O diagnóstico

28.9.25
A minha filha foi diagnosticada com PHDA (Perturbação de Hiperatividade/Défice de Atenção) e eu pensei em várias coisas ao mesmo tempo. Primeiro, isto porque no discurso verbal temos de apresentar as ideias por uma ordem, lembrei-me da história de uma amiga que vivia em Timor (podia dizer conhecida, mas não existe isso naquela ilha) e que sofreu um acidente nos tumultos de 2006, quando levou com uma pedra no rosto. Durante algum tempo ela pensou que nunca iria conseguir abrir a boca, mais do que o suficiente para enfiar a comida e mastigar com dificuldade, sem ser submetida a uma cirurgia complexa e com uma recuperação dolorosa. A mãe sugeriu que procurassem outro especialista para ouvir outra opinião, mas o diagnóstico foi o mesmo - tem de ser operada. O seguinte disse o mesmo e, finalmente, o terceiro (ou quarto, já não me lembro quantos é que ela consultou) disse-lhe para não se preocupar, que ela ia acabar por recuperar e voltar ao normal naturalmente. Quando saíram do consultório, a mãe disse-lhe: "Estás a ver? Nunca devemos desistir, só temos de continuar a procurar um médico que nos diga o que queremos ouvir". E, realmente, ela acabou por recuperar.
A minha filha achava, há muito tempo, que tinha PHDA, depois de ter sido diagnosticada com depressão por um pedopsiquiatra para logo a seguir o diagnóstico ser retirado, assim como a medicação, pelo mesmo especialista. Mais tarde, veio o da bipolaridade por uma psiquiatra e, finalmente, o diagnóstico que ela procurava. 
A segunda coisa que pensei foi como é que não vi? Eu eduquei-a, eu passei anos da minha vida de volta dela, e durante oito anos só dela, antes de nascerem os irmãos, eu não tirei os olhos, os braços, o peito de cima dela, o que é que me escapou? Eu sei que o diagnóstico desta perturbação é raro nas crianças do sexo feminino, mas será que deveria ter ido à procura dele?
Toda a gente dizia que ela era uma criança diferente, "genial", mas para mim era uma criança normal. Era a minha menina, que chorava sempre que tinha de ir para a creche e infantário, que adorava brincar às lojas, que gostava de comer e depois deixou de gostar, que adorava o Sérgio Godinho e a Floribela. Quando foi para a primária a professora mandou-a sair da sala com o colega, porque não paravam de falar. Eles saíram e foram bater à porta de outra sala. Foi a professora que me contou, a queixar-se de ela não parar de falar e a elogiar-lhe o desenrasque. Em Lisboa, noutra escola primária, foi seleccionada para debater na Assembleia Municipal e conseguiu que a escola tivesse um novo ginásio, mas quando tinha de fazer os trabalhos de casa levantava-se e sentava-se mil vezes e não era assim tão raro cair para trás com a cadeira. Para mim era normal, tanto uma coisa, como outra. 
Já no conservatório de música a directora de turma disse-me que ela devia ir a uma psicóloga, porque achava que ela podia ser bipolar. Eu achava que ela era adolescente, mas fomos para o hospital psiquiátrico da infância e adolescência, que serviu basicamente para ela começar a interessar-se por psicologia. 
Não vi, porque apesar de tudo ela era boa aluna e uma criança feliz. Na adolescência já não me parecia tão feliz, mas quem é feliz nessa fase da vida? Depois, apesar da auto-exigência, da volatilidade dos interesses, eu acreditava que ia ficar tudo bem. Até ter deixado de ficar. 
Quando falámos sobre isso ela disse-me que tendo em conta que a doença, ou condição, tem uma forte componente genética e que o Isaac provavelmente sofre do mesmo (houve uma professora na primária que achou que ele poderia ser hiperativo), a probabilidade de eu sofrer de PHDA é considerável. Não dei grande importância a esse pormenor, porque não ando à procura de diagnósticos, por enquanto, mas no outro dia estava na biblioteca a ler as Memórias do Cárcere, de Camilo Castelo Branco, e peguei no telemóvel para procurar o realizador do filme O Quadrado, porque devo ter pensado em Estocolmo, onde queremos ir juntas, e quis confirmar se o museu era nessa cidade (é em Gutemburgo) e ocorreu-me se a catadupa de pensamentos sem ligação aparente uns com os outros seria um sintoma desta condição. 


Ser o que somos

6.9.25
Estou a ler o diário de Fernão de Magalhães e a achar tudo fascinante¹ - a descrição dos povos que vai encontrando, a linguagem técnica da rota e das embarcações, a forma meticulosa de relatar os acontecimentos e certas observações como esta: "(...) andámos a singrar o mar Pacífico no qual Deus, na sua sabedoria infinita, parece que Se esqueceu de pôr terras, ilhas e gentes para melhor proveito das criaturas que habitam neste mundo''. Mas o que mais me deixou espantada foi perceber que a maior parte do diário é sobre as intrigas da corte e as guerrilhas entre os tripulantes. 
O homem é o protagonista de uma verdadeira epopeia e não há um único relato apaixonado sobre tempestades, monstros marinhos, perigos à espreita e por aí fora. Quase de certeza encontro esses relatos nos registos de Pigaffeta (há um ou outro que aparece no livro, mais direccionado ao heroísmo de Magalhães), uma vez que os escritores são mais sensíveis aos fenómenos da Natureza, da humana e da natural por assim dizer, mas sei lá se vai continuar a apetecer-me ler sobre a circum-navegação.²
Estava a dizer que o que me deixou espantada foi o quanto o relato das intrigas, e problemas entre os seus pares e a Corte, ocupa as páginas do diário, mas se calhar não deveria espantar-me. O problema é sempre as pessoas. 
Todos os dias confronto-me com essa realidade, mas não foi sempre assim. Não sei se estou diferente,  ou se estou só a trabalhar no sítio errado. Infelizmente, ainda (!!!!!!) é com as pessoas do trabalho que se passa mais tempo.

Outro assunto completamente diferente, sem deixar de estar relacionado com eu ser uma pessoa diferente do que fui, decidi sair do grupo que escreve semanalmente (ou quando calha) sobre o mesmo tema. Estou numa fase da minha vida em que preciso de ver os resultados das minhas acções. Pode ser por causa daquilo da dopamina, não sei, mas não quero estar num projecto só porque é giro, quero estar com uma intenção, quero vê-lo crescer e florescer no meu tempo de vida, que não sei qual é, mas é sempre pouco. É verdade que muitas vezes uma semente cai em terreno fértil e cresce sem qualquer cuidado, mas por norma uma semente precisa de água e sol, às vezes sombra, para florescer e continuar a crescer. Não tenho qualquer dúvida que o Largo (o nome que decidimos dar ao colectivo) pode vir a ser um belíssimo jardim - já é um conjunto de canteiros bem bonitos, mas eu preciso de outra coisa. 
Seja como for, foi muito bom fazer parte deste projecto: escrevi textos de que gosto bastante e outros nem tanto, descobri o substack, e com ele pessoas que andam a dizer coisas muito interessantes, e percebi que quero continuar a escrever num blog quando me apetecer, sem subscritores e sem preocupações com temas. Escrever para mim. 


¹ Tenho a noção de todas as implicações das Descobertas, além do heroísmo que nos permitiu conhecer o mundo, e sei que apesar de só termos um vislumbre, neste diário, das barbáries e explorações dos povos indígenas, é evidente a convicção dos portugueses/castelhanos da sua superioridade em relação aos outros humanos. Mesmo assim continuo fascinada.

² Parece que nos apontamentos que ele escreveu, depois de ter entregado o diário que fez a bordo das naus, Trinidad na ida e Victoria na volta, ao rei D. Carlos, há uma série de textos eróticos a roçar a pornografia, pelo que talvez me apeteça ler.

Terapia

11.7.25
O que eu queria era estar numa residência artística para escrever. Quer dizer, para criar já que é isso que se faz numa residência artística, cria-se. Ora, eu podia criar galinhas, como a minha mãe faz, ou podia criar filhos, se já não estivessem criados (a que idade consideramos as crias humanas criadas?), também há muita arte nisso, mas eu queria escrever. Isto é, queria ser paga para o fazer, ou melhor, queria ver o que aconteceria se tivesse um ano sem qualquer outra obrigação que não fosse escrever.
Quase aposto que bloquearia. Ou não. Passaria muito tempo a tricotar e a caminhar, isso é certo, para arrumar ideias, que é o que se procura com a terapia, e sairia de lá com umas quantas páginas e algumas camisolas e cobertores. E aceitaria que a conjugação de uma série de factores aleatórios, incluíndo a insuficiência de talento, não me permitiu chegar onde queria.
Aceitação. É na aceitação que se encontra a redenção, não é?  Eu sempre confundi aceitação com acomodação e isso não é para mim. Não quero acomodar-me. Mas o que descobri com o tempo - é, a passagem do tempo tem as suas vantagens -, é que a aceitação pode demorar uma vida inteira, porque não podemos aceitar aquilo que não conhecemos e o auto-conhecimento é das coisas mais incómodas que podemos experienciar.
Dito assim até pareço muito entendida, mas isto é puro senso comum. As terapias que fiz ao longo da vida resumem-se a dois tratamentos para a depressão (sobretudo drogas e pouca análise), algumas experiências mais ou menos esotéricas e muita observação à minha volta.
Ainda não sei quem sou, mas estou a caminho de descobrir, espero, porque saber quem somos, no sentido Junguiano do termo, resolve a maioria dos nossos problemas, reais ou inventados, se não mesmo todos. 

Outras terapias:



Salvação

4.7.25
Desta vez achei que tinha de arriscar um haiku:

Salvação sweet
No sal da água do mar
Corri para ti

No original tinha escrito alva, em vez de sweet, mas depois fui ver O Salvado, hoje, e a Olga Roriz usa a palavra sweet relacionada com salvação, ou assim entendi, já não sei. Que beleza de espectáculo! 
Estou farta de dizer e vou continuar a insistir: A ARTE SALVA.
A certa altura ela diz: O mundo pode desabar mas a poesia salva (estou a parafrasear, porque não decorei).
Não tenho quaquer dúvida. Só a arte nos pode salvar. 

Não bebo cerveja

27.6.25

quando como sardinhas assadas, ou bacalhau cozido. Não bebo cerveja ao jantar, a não ser que vá comer uma francesinha.
Não bebo cerveja tão frequentemente como bebo vinho. E quando bebo é quase sempre Super Bock. Também bebi muita Tiger em Timor-Leste e Bintang na Indonésia. Na Tailândia bebi Singha e em Amesterdão Brouweriij'tij.
Mas não bebo cerveja, a não ser que esteja a comer tremoços numa tarde de Verão, francesinhas, como já mencionei, ou depois de uma empreitada como fazer mudanças, ou acartar entulho das obras.
Seria melhor dizer: bebo cerveja às vezes, mas não é esse o tema.
Tenho a certeza que há uma lista, algures, que incluí cerveja.